14 fevereiro 2007

Perspectivas sobre a surdez

Perspectiva clínica
De um ponto de vista médico, o importante é avaliar a surdez e determinar como corrigi-la, usando implantes cocleares, próteses auditivas, terapia da fala e aprendizagem de leitura de fala. A orientação é sempre no sentido de tentar fazer com que a pessoa surda seja o mais “normal” possível, o que indica uma visão de indivíduos a quem falta algo e remete para uma etiologia subtractiva. As capacidades olfactiva, visual e de atenção são consideradas como compensação da perda auditiva, havendo uma centralização nas carências consequentes da surdez e para aquilo que não são capazes de fazer. O próprio surdo que encare a surdez dentro desta perspectiva de patologia poderá afirmar que não é surdo, mas apenas ouve mal.

A surdez é uma deficiência e pode ser mais ou menos limitativa dependendo de vários factores: não só do grau, tipo e etiologia da surdez, mas também da qualidade da educação/estimulação (sobretudo na infância). Um indivíduo surdo terá sempre mais dificuldades de integração numa sociedade de ouvintes e não é por acaso que a maioria dos surdos se aproxima de outros surdos e assim constitui família.

Perspectiva cultural
As pessoas que adoptam uma abordagem cultural assumem a surdez como uma diferença singular e não se focam na incapacidade. A Língua Gestual é considerada como a língua natural da sua comunidade e a surdez como um factor de orgulho. Por exemplo, há pais/cuidadores que consideram que a criança com um implante coclear aprenderá a falar normalmente com boa terapia, que ficará completamente integrada no mundo ouvinte e que as outras pessoas não conseguirão identificá-la como surda. Já numa perspectiva cultural, considera-se que uma criança com implante coclear, que use a língua gestual e que seja acompanhada em terapia da fala, conseguirá comunicar tanto com as pessoas ouvintes como com as surdas e não será relevante se os outros conseguem assinalá-la como surda ou não. Uma visão mais radical é a de que os surdos não precisam de oralizar, uma vez que a integração na sua comunidade e o uso da sua língua lhes trará toda a autonomia e socialização necessárias.

Emanuelle Laborit, surda profunda e actriz agraciada com o prémio Molière, faz um relato na sua biografia revelador da importância de uma pessoa conseguir perceber qual é a sua identidade e a igualdade da sua diferença:

“Um dia, quando era pequena, a minha avó materna, que era muito religiosa, contou-me uma história. Adorava que ela me contasse histórias. Naquele dia foi a ”minha” história... E nunca a esquecerei. Disse-me ela: “Sabes, Deus escolheu-te. Quis que fosses surda. Isso quer dizer que espera que transmitas alguma coisa aos outros, às pessoas que ouvem. Se tu ouvisses, se calhar não eras nada. Serias uma menina banal, incapaz de levar alguma coisa aos outros. Mas ele quis que fosses surda, para dares alguma coisa ao mundo.” (...) A minha avó transmitiu-me uma espécie de filosofia da existência. Uma solidez. Uma vontade.”
in O grito da gaivota (2000, p.204)

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Todos os pais têm sonhos para os seus filhos e idealizam como serão, mas estas visões podem ficar estilhaçadas abruptamente. Após a revelação de que têm um filho que não ouve, passam por uma fase inicial de choque, de frustração e decepção. O ideal seria que surgisse de seguida a fase da adaptação e da orientação, caracterizada por uma visão mais realista e por um rumo face aos serviços e apoios disponíveis. Poderá haver alguma dificuldade em ultrapassar os sentimentos de negação ou de superprotecção, mas é importante atribuir responsabilidades ao indivíduo surdo, encarar a deficiência e abranger o resto como normal, ou seja, não o socializar para a doença.

Numa família com surdos que conheço, pude constatar que houve uma mudança em favor da língua gestual ao longo dos anos, porque foi possível estabelecer uma comparação entre um surdo de 35 anos e o seu filho, igualmente surdo, actualmente com 7 anos. Há três décadas atrás, a corrente que vigorava era a oralista, mas o avô desta criança conseguiu fazer uma avaliação retrospectiva das suas opções e reconhecer a importância do aparecimento precoce de uma forma de comunicação que permitisse um melhor desenvolvimento de noções cognitivas básicas, essenciais para um desenvolvimento típico da linguagem. Este avô sentiu a necessidade de aprender a língua gestual para poder comunicar com o neto, algo que não tinha ocorrido com o seu filho surdo. Verifica-se que esta criança tem uma comunicação mais desenvolvida do que tinha tido o pai dele, na mesma idade, e que seguiu as fases normais de aquisição da linguagem, uma vez que teve contacto com a língua gestual e natural dos surdos desde o nascimento.

No entanto, a maior parte do esforço continua a ser exigido aos surdos e apesar de ser um direito deles o de dominar a língua de aquisição natural, é uma necessidade conhecer a língua do grupo maioritário de ouvintes, de forma a conseguirem comunicar e ter acesso, por exemplo, à informação escrita.

A maior parte da aprendizagem ocorre em interacção com os outros. Os pais/cuidadores têm um papel fundamental porque são os interlocutores e modelos privilegiados dos seus filhos, para além de serem eles que tomam decisões que poderão influenciar todo o futuro de uma criança. Desta forma, é muito importante a escolha que se faz quanto aos métodos de comunicação que se julga serem mais benéficos e eficientes. Os técnicos são igualmente importantes, não só através de uma intervenção continuada, mas também ao nível de prestação de esclarecimentos quanto às opções, para que os pais possam fazer uma escolha consentida e informada.

Um dos métodos mais preconizados actualmente para a intervenção em surdos é a comunicação total, que admite uma variedade de combinações e permite que a criança use a forma que lhe seja mais conveniente consoante o contexto. Alguns estudos já demonstraram os efeitos favoráveis desta abordagem em todas as áreas de desenvolvimento das crianças – psicossocial, linguística e académica. No entanto, se a linguagem oral for pouco valorizada e de utilização limitada no contexto onde a criança está inserida, os resultados poderão ser pouco visíveis, porque a língua gestual é a natural e mais espontânea para os surdos. O acompanhamento em terapia da fala é essencial porque fornece ferramentas para: o acesso à informação, a leitura de fala, a expressão para com ouvintes, a facilitação da aprendizagem e do desempenho escolar. As relações sociais e linguísticas são importantes na constituição do indivíduo e um atraso de linguagem pode causar dificuldades sociais, emocionais e cognitivas, além das comunicativas.
Os surdos não podem adquirir naturalmente uma língua auditiva-oral e, uma vez que existe um meio de comunicação visual, o problema deles não será orgânico, mas sim social e cultural.
Realizado por Eva Antunes