13 janeiro 2007

De Profundis, Valsa Lenta

J., a comparsa com quem partilho as ansiedades, convicções, perplexidades e satisfações do estágio, disse “Gostava de ficar afásica durante uma hora, só para ver como seria.”. J. teve uma atitude que considero fundamental numa relação terapêutica, que é a de nos colocarmos no lugar do outro. São pessoas e não casos. Esta conversa recordou-me um livro de um dos meus escritores portugueses favoritos e que já li há uns 10 anos. Na altura, pensei: “Que estranho! Cardoso Pires falava, mas o seu discurso não fazia sentido, inventava palavras, não compreendia o que o rodeava e um detalhe muito interessante é que, ao longo da sua narrativa, tanto usa a primeira como a terceira pessoa do singular – «eu» e logo na frase seguinte «ele»!!”.

José Cardoso Pires, sofreu um acidente vascular cerebral grave, em 1995, que lhe afectou a área da linguagem. Ele sobreviveu e deixou-nos um livro sobre a sua experiência na fronteira turva entre a vida e o fim, a que ele chama de morte branca. Ler De Profundis, Valsa Lenta é ter o privilégio de conhecer algo mais sobre afasia do tipo fluente, através de palavras trabalhadas com mestria. O regresso lento das profundezas…
José Cardoso Pires (1925-1998)

Nas palavras do próprio... De Profundis, Valsa Lenta:
HORTA, Maria Teresa in Diário de Notícias, Há mais imaginação na ciência, Lisboa, 11 de Julho, 1997
«"De Profundis" é um livro terminal?

Não considero que seja um livro terminal. Digamos que De Profundis será, quanto muito, na minha opinião, um espaço branco no meio da minha escrita, da minha obra. Eu nunca pensei escrever esse relato, ou esta memória, não sei como posso chamar a este texto.

Porque o escreveu?
Em conversas que tive com o professor Lobo Antunes ele disse-me: "Você contou-me coisas que valia a pena que as relatasse." Como ele escreveu no seu prefácio, "é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral". E eu resolvi seguir o conselho.

Foi fácil escrever sobre a sua doença?
Não, foi difícil, fi-lo sempre com grande receio, porque não tenho cultura médica, não tenho cultura científica para me estar a meter em terrenos que não me são próprios.

Este é um livro de ficção?
Não, não é. Antes dele tentei fazer um livro de ficção e depois pu-lo de parte.

Mas não é seu hábito escrever mais do que uma versão de cada livro?
É realmente meu costume escrever duas versões, no mínimo, de cada livro. Desta vez escrevi qualquer coisa como três versões deste texto.

Muito diferentes umas das outras?
Muito. Eu queria fazer uma coisa rigorosamente objectiva. E depois, do ponto de vista literário, que é o que me interessa particularmente, tentei fazer aquilo a que se poderia chamar uma escrita branca.

E acha que conseguiu atingir essa escrita branca?
Bem, essa escrita branca foi sempre o meu sonho, uma escrita despojada, uma escrita substantiva tanto quanto possível.

Despojada de quê?
Despojada de barrocos, de advérbios. Como fez esse grande poeta, o João Cabral de Melo Neto, que me seduz pela sua escrita seca e descarnada.

Pode dizer-se que este é um livro de memórias?
Sim, uma memória da não memória. Não tenho uma boa definição para isso.

No texto você diz que fez uma viagem à não memória.
Uma viagem à desmemória, ao homem sem memória, e um homem sem memória é um homem perdido. Porque não tem afectos, ninguém pode gostar de alguém se não tiver memória.

Você perdeu igualmente as suas emoções?
Perdi as emoções, quase perdi a fala, a fala fica destroçada, perdi as relações, pois quando não se tem memória não se tem relações, quando se perde a leitura e a escrita fica-se impossibilitado de comunicar.

Mas não conta neste livro as memórias desse estado?
O que conto neste livro foi em grande parte o que me contaram, não foi imaginado.

Então, que referências é que teve quando escreveu "De Profundis"? Só o que os outros lhe disseram?
Há coisas que conto, que vivi, que me lembro delas, embora não sejam muitas. O ambiente, sim, lembro-me dele. A recordação que tenho é de uma brancura iluminada, as pessoas eram vultos muito brancos. Suponhamos que podia haver sombras brancas... O que me ficou foi a brancura morna e bastante iluminada.

Portanto, não tinha, não havia identidade?
Totalmente. É isso que penso hoje. Quando andava naquilo sem saber, aparecia uma pessoa, cumprimentava-me, eu olhava-a e nunca tinha conhecimento de quem se tratava. Mas assim que essa pessoa saía perguntava logo quem era. Eu queria entender quem eu era e uma das maneiras de o saber seria saber quem era o outro, porque através do outro tinha referências.

O facto inquietava-o?
Ah, não! Andei perfeitamente tranquilo, a sorrir para toda a gente. Eu, que não sou sorridente, como sabe, acho que nunca fui tão simpático.

Em que espaço é que se passa este seu livro?
Para mim aquele período todo não tem dimensões.

Logo, o seu horizonte era um horizonte vazio?
Sim, era um horizonte perfeitamente vazio, eu via as pessoas e as pessoas passavam po mim.

Com esta escrita pretendeu exorcisar isso tudo?
Não, com esta escrita descobri uma coisa em que nunca tinha pensado, é que o bem mais precioso do homem é a memória.

Mais do que a inteligência?
Mais. A inteligência não pode existir sem memória. A memória é tudo, é a base do ser humano. Estou a dizer isto e nunca na vida li alguma coisa sobre a memória... Continuo tão analfabeto em coisas de medicina como dantes.

A memória será, pois, a grande descoberta deste texto?
É a descoberta que faço neste livro. Mas há também em De Profundis a descoberta de uma extraordinária gratidão pela ciência, pelos médicos, é por isso que o dedico a eles.

Tem uma grande admiração pela ciência?
Sempre tive. O Pessoa, Álvaro de Campos, compara o binómio de Newton à Vénus de Milo, eu não comparo, sem a Vénus do Milo podia passar.

Mas podia passar sem literatura?
Ah, isso é outra coisa! Eu percebo a pergunta, é correcta porque isto dito assim é um bocado forte de mais, há comparações que não são justas. Mas, por exemplo, se me perguntarem onde há mais imaginação, se na ciência ou nas artes responderei, sem dúvidas que é sobretudo na ciência.

Pode dar um exemplo?
A imaginação das artes deu para o senhor Júlio Verne descrever a Lua, enquanto a imaginação da ciência deu para ir à lua e estar lá.

Mas a literatura inventa, prevê, vai à frente, não acha?
Uma das funções da literatura é não só "prever" o passado como prever o futuro. É aliciante por esse lado, mas como valor humano, como carga humana, a ciência ultrapassa-a.»

3 Comments:

Blogger Cláudia said...

Gostei muito deste post.

Está na altura de tirar o livro da prateleira. Já o comprei há tanto tempo e nunca o li...

15/1/07 5:13 da tarde  
Blogger Eva Antunes said...

Eu também gosto particularmente deste post...

21/1/07 2:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Curiosamente ou não acabei recentemente de ler este livro.
O nosso cerebro é uma coisa fantástica.
Optima escolha.

29/1/07 3:07 da tarde  

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