02 dezembro 2006

Neuropsicologia cognitiva - breve perspectiva histórica

Afasia é a perturbação de linguagem que ocorre após uma lesão cerebral nas estruturas que se supõe serem responsáveis pelo processamento da linguagem (por ex., acidente vascular cerebral, traumatismo crânio-encefálico, tumor, infecção). Os conceitos sobre a afasia têm sofrido evoluções desde o século XIX. Apesar de rapidamente contestado, Franz Joseph Gall (1796), fundador da frenologia, introduziu a noção revolucionária de que no córtex cerebral estariam órgãos capazes de desempenhar funções, que pelo seu desenvolvimento moldavam a calote craniana e através da análise da cabeça de cada indivíduo seria possível adivinhar as suas competências e aspectos da sua personalidade (Castro Caldas, 2000). Estas ideias serviram para iniciar o debate sobre se diferentes partes do cérebro seriam responsáveis por capacidades mentais distintas (Basso, 2003).

Os primeiros passos no estudo da afasia foram dados por Paul Broca (1861) e Carl Wernicke (1874), com pioneiros estudos post mortem em indivíduos que tinham sofrido lesões cerebrais, tentando estabelecer uma relação entre a área cerebral afectada e as perturbações de linguagem. Broca descobriu que ocorriam alterações na linguagem após lesão no hemisfério esquerdo e que a perda da fala articulada se devia a uma lesão cortical na porção posterior do giro frontal inferior esquerdo (área de Broca), originando uma afasia motora ou não-fluente. Wernicke revelou que haveria uma forma diferente de afasia, que seria fluente e com perturbações da compreensão associadas, após lesão cortical na parte posterior e superior do lobo temporal esquerdo (Basso, 2003; Obler & Gjerlow, 2002; e Williams, White & Mace, 2004).

Estas descobertas foram a base da abordagem localizacionista à afasia, que levou à classificação em síndromes (conjunto de sintomas que podem co-ocorrer) ainda muito utilizada e popular, apesar de haver perspectivas diferentes e algumas até completamente opostas. Com base na avaliação de 4 pontos cardinais – fluência, compreensão, nomeação e repetição – faz-se a divisão em afasia de Broca, afasia de Wernicke, afasia de Condução, afasia Transcortical Motora, afasia Transcortical Sensorial, afasia Transcortical Mista, afasia de Nomeação e afasia Global (Basso, 2003, Castro Caldas, 2000 e Obler & Gjerlow, 2002).

Segundo Basso (2003) e Castro Caldas (2000), esta classificação é útil para fins médicos e para estudos de casos com características idênticas, na medida em que agrupa e faz um resumo dos sintomas do doente e porque capta algumas regularidades nas perturbações da linguagem. Estes autores consideram ainda que não é útil para a pesquisa nem para a reabilitação, porque o mais importante é ter uma “(…) perspectiva multidimensional, atendendo às idiossincrasias que podem permitir (…) adaptar o programa de reabilitação, que deve ser sempre feito por medida.” (Castro Caldas, 2000, 167). Basso (2003) relata que em meados dos anos 1950, surge a Neuropsicologia Cognitiva, cujo objectivo principal era pesquisar mais sobre o funcionamento da mente e formular descrições sobre os processos que ocorrem durante a execução de uma actividade mental, tal como falar, memória, reconhecimento, etc. O sistema de processamento humano foi comparado ao de um computador, com sub-sistemas e diagramas (por ex., o modelo da dupla via – ver “Fala” passada).

O objectivo básico da Neuropsicologia Cognitiva é fornecer uma teoria sobre o processamento cognitivo normal e explicar o desempenho de doentes com lesão cerebral, em termos de comprometimento de um ou mais componentes. Os neuropsicólogos estabeleceram a existência de deficits selectivos, sugerindo que o cérebro está organizado em áreas distintas com alguma independência funcional, apesar de interligados (Basso, 2003).

Assim, a Neuropsicologia Cognitiva faz uma abordagem funcional ao estudo da mente, ou seja, a caracterização de padrões de desempenho perturbado em função dos sub-componentes lesados. Está mais preocupada com a natureza dos mecanismos cognitivos e menos com a sua localização, tendo por base alguns pressupostos (Basso, 2003):
* Modularidade – Cada função cognitiva complexa consiste numa série de sub-componentes funcionalmente independentes, ou seja, módulos. Estes sistemas são ilustrados por diagramas, com caixas que representam os módulos e setas para as vias de acesso e fluxo de informação.
* Universalidade – Não existem variações individuais significativas quanto à estrutura funcional dos sistemas cognitivos, senão não seria possível fazer inferências de doente para doente.
* Subtracção – Não são criadas estruturas cognitivas novas como consequência de uma lesão; apenas algumas operações do sistema estão perturbadas. As transformações patológicas podem ser inferidas a partir da análise da estrutura normal.

A localização da lesão é um bom ponto de partida para a decisão subsequente quanto aos objectivos da intervenção. No entanto, para se iniciar o processo terapêutico é necessário fazer um claro diagnóstico funcional dos componentes afectados, que permita restringir as escolhas terapêuticas mais adequadas a cada caso.

REFERÊNCIAS: 1] Basso, A. (2003). Aphasia and its therapy. New York: Oxford University Press. 2] Castro Caldas, A. (2000). A herança de Franz Joseph Gall – o cérebro ao serviço do comportamento humano. Lisboa: McGraw-Hill. 3] Obler, L.K. & Gjerlow, K. (2002). A linguagem e o cérebro. Lisboa: Instituto Piaget. 4] Williams, S.M.; White, L.E.; Mace, A.C. (2004). Sylvius for Neuroscience – a visual glossary of human neuroanatomy. [CD-ROM]. Pyramis Studios.

Imagem de Sylvius for Neuroscience

Realizado por Eva Antunes